A crise em curso entre a Rússia e a Ucrânia está a ameaçar mudar o status quo global e levar o mundo retroceder algumas décadas de várias formas, desde as relações geopolíticas e a paz, até o comércio e a economia.
Com países e governos ainda tentam recuperar da pandemia, o impacto económico da crise pode ser superdestrutivo, dependendo isso da extensão e do alcance do conflito e da extensão das sanções impostas. Embora possa levar algum tempo para que todos os contratempos financeiros entrem em vigor, essa nova realidade já está a deixar uma marca considerável no complexo setor de transporte marítimo.
Com a intervenção militar fora de equação neste momento, o Ocidente está a recorrer a sanções como forma de tentar pressionar a Rússia a acabar com o conflito. Instituições financeiras, investimentos no mercado russo, exportação de bens e acesso aos mercados financeiros da UE foram limitados, cortando a capacidade da Rússia de realizar transações, obter crédito e negociar com o resto do mundo.
Como é que essas sanções impactam no domínio marítimo? Olhemos, então, mais de perto, os impactos da crise no transporte:
Financiamento do comércio
As restrições financeiras tornarão o financiamento comercial da Rússia para os EUA ou a UE muito difícil, pois visam aproximadamente 80% de todos os ativos bancários russos. Ao cortar o acesso aos mercados financeiros dos EUA e da Europa, as empresas russas não poderão financiar a maioria dos negócios globais, pois o pagamento dessas exportações será, de imediato, rejeitado pelos reguladores dos EUA e da Europa.
O impacto sobre o financiamento do comércio dessas novas sanções será bastante extenso. O Sberbank, que responde por metade da participação no mercado bancário russo, realizou US$ 39,6 mil milhões em negócios de financiamento comercial em 2019. Sem acesso ao sistema financeiro global, este e outros acordos de financiamento comercial serão, provavelmente, eliminados por completo.
Empresas de transporte
Dos cerca de 44.000 navios cargueiros e petroleiros que vêm operando globalmente nos últimos dois anos, aproximadamente, 2.000 são de propriedade de empresas registadas na Rússia. Isso significa que qualquer armador, empresa de transporte, comerciante ou banco que trabalhe com empresas russas está imediatamente mais exposto ao risco, pois pode ser colocado na lista negra a qualquer momento.
Com essa incerteza em mente, todos os negócios futuros, incluindo entidades e embarcações russas, correm o risco de serem cancelados ou renegociados. Uma situação semelhante aconteceu em setembro de 2019, quando os EUA sancionaram a Cosco Dalian, subsidiária da gigante chinesa Cosco, por transportar petróleo iraniano. Os afretadores, de imediato, deixaram de reservar todos os navios-tanque da Cosco, e não apenas os da subsidiária Dalian, que fora sancionada. Isso, na realidade, removeu 140-150 navios-tanque do mercado global de fretamento da noite para o dia, fazendo com que as taxas spot subissem acima dos US$ 100.000 por dia.
Assim, embora o OFAC (Office of Foreign Assets Control) só tenha sancionado, até agora, o transporte marítimo Sovcomflot, que possui 229 navios-tanque e controla outros 5 navios (de acordo com o banco de dados Windwards), estas sanções crescentes podem resultar na remoção de mais de 2.000 navios russos do mercado global de afretamento, imediatamente.
Por exemplo, a foto abaixo, retirada da plataforma Windward, mostra que há novas sanções impostas a um navio de propriedade da Transmorflot, Ooo – uma empresa de navegação russa, que possui 24 outros navios que também podem ser sancionadas nos próximos dias.
Fluxos comerciais desviados
Uma das sanções que ainda estão a ser discutidas é a proibição de navios russos de escalarem portos na UE a exemplo do Reino Unido. Isso significa que os navios russos não podem carregar e descarregar cargas ou embarcar e desembarcar passageiros em qualquer porto da UE ou do Reino Unido. Somente nos últimos 12 meses, vimos 10.025 escalas de navios de propriedade russa e 6.331 escalas de navios de bandeira russa na Europa.
Se se levar em conta as escalas de navios de bandeira russa e de propriedade russa para o Reino Unido e os EUA, atingimos mais de 18.300 escalas, só no ano passado. A retirada desses navios do mercado, certamente, causará alterações nos fluxos comerciais e perturbará a importação e exportação de cargas e mercadorias de, e para, a Europa.
A Turquia, que é membro da OTAN, também anunciou que não permitirá que navios de bandeira russa entrem no Estreito de Bósforo. Espera-se que isso também tenha um impacto significativo nos fluxos comerciais, com, aproximadamente, 445 navios de bandeira russa, que cruzaram o Bósforo por 4.500 vezes no ano passado.
Os portos da Rússia e da Ucrânia no Mar Negro são grandes centros de exportação de trigo, milho e petróleo bruto. Com a área do Mar Negro sendo a segunda maior região exportadora de grãos do mundo em 2021, com 111,2 milhões de toneladas de carga (Rússia e Ucrânia respondem por 30% das exportações globais de trigo), o impacto económico e agrícola desta crise ainda está por se revelar.
Estes últimos dias têm sido uma montanha-russa emocional para o mundo moderno. Com as feridas da pandemia apenas agora a começarem a cicatrizar, muitas organizações sentem-se confusas e sobrecarregadas com as consequências multifacetadas desta guerra nas suas operações em geral, bem como no seu domínio marítimo. Em tempos tão complexos, a experiência em leitura dos acontecimentos em tempo real e percepção sobre os riscos marítimos, podem oferecer um nível de certeza e confiança, minimamente, necessárias. Tempos de crise exigem atos de abnegação e compromisso. Só isso permitirá que as organizações se beneficiem da compreensão do ecossistema marítimo no contexto da due diligence, conformidade com sanções, segurança e proteção, comércio e abastecimento de matéria-prima e transporte de contentores.
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