3 de março de 2022

A vida "secreta" dos pilotos

 

Geraram enorme preocupação as questões da “cadeia de abastecimentos” durante a pandemia. O leitor comum de um site de informação marítima, provavelmente, estará ciente do importante papel que o setor marítimo desempenha nessa cadeia de abastecimentos, embora o público, em geral, pareça ignorar de como aquela televisão de grande ecrã (que estão a pensar comprar) chegou à prateleira da loja local. “Na realidade, é um elogio para todos nós marítimos dentro da cadeia de abastecimentos que realizamos o mais improvável dos feitos: ser onipresente na economia mundial e, ao mesmo tempo, invisível para os consumidores do mundo.” 1

Toda a crítica e escrutínio recentes sobre a cadeia de abastecimento pôs o foco no setor marítimo e, nem sempre, no bom sentido. Estou a pensar, é claro, no M/V EVER GIVEN, preso durante seis dias no Canal de Suez. À medida que o ciclo de notícias altera e a nossa atenção fica cada vez menor2, isso significa que o foco nos navios e embarques desaparecerá das notícias de “primeira página”, muito rapidamente.

Mas enquanto navios e tripulações de navios sempre tiveram um lugar de destaque na literatura tradicional (Moby Dick, Os Revoltosos do Caine), filmes de Hollywood (Titanic, Revolta no Navio Bounty, Captain Phillips) e entretenimento TV popular (Love Boat, Gilligan's Island), os pilotos e a mportante contribuição do que eles fazem, são amplamente ignorados.

Normalmente, quando a profissão de “piloto” surge numa qualquer conversa social, fica claro que o piloto de avião é o que primeiro vem à mente da maioria das pessoas. Mas, na verdade, quando você procura “piloto” no dicionário, a primeira das cinco definições é “uma pessoa devidamente qualificada e licenciada, para conduzir um navio para dentro e fora de um porto ou em águas especiais, muitas vezes pago e que, enquanto no comando, tem total controlo sobre a condução de sua navegação”. O humilde piloto da linha aérea vem em quarto lugar, antes de bico de um esquentador ou de aquecedor a gás, de um “peixe carnívoro” (Menominee Whitefish) e um “profissional que monta um cavalo em corridas” (também chamado de jóquei).

A relativa obscuridade que cerca o trabalho do piloto marítimo não se deve ao facto de ser uma profissão nova. Muito pelo contrário, é uma das profissões mais antigas do mundo, com menções de pilotagem na “Ilíada” de Homero (século VIII a.C.) e no Antigo Testamento. Embora a pilotagem, de alguma forma, existisse há séculos, o primeiro serviço de pilotagem “organizado” parece ter tido a sua origem na Holanda, no início de 1800. Um holandês chamado Frans Naerebout é, geralmente, reconhecido como o pai da pilotagem moderna como profissão, e creditado por guindar a pilotagem à arte e ciência que é hoje.

O facto de Pilotar estar “fora do radar” do público em geral, pode ser rastreado até à profissão com raízes no “Sistema de Guildas”3. As guildas eram sociedades associativas, tipicamente compostas por artesãos ou comerciantes, que descobriram que os principais “princípios de guilda” de cooperação e solidariedade promoviam os objetivos comuns da sua profissão. A pilotagem foi uma dessas profissões que abraçaram esse formato, pelo que vestígios das guildas podem ser vistos nas modernas associações de pilotagem. As características das guildas, que as tornam ainda hoje adequadas às organizações de pilotagem, são uma base voluntária de associação, uma fraternidade de membros, um alto grau de interdependência dos seus membros, uma organização baseada em princípios democráticos, determinação conjunta das condições de trabalho e remuneração, fundos comuns para o bem comum, regulação por um órgão soberano, propriedade comum de bens e um esforço conjunto para o bem comum e proteção de seus membros4.

Típico das guildas da época, os pilotos elegiam os seus próprios oficiais, admitiam membros desejáveis, estabeleceram programas de aprendizagem e providenciavam o bem-estar geral dos seus membros. As guildas guardavam, ferozmente, o seu conhecimento e passavam-no através de aprendizados práticos, dando a impressão que as guildas se comportavam como “sociedades secretas”. A prática de aprendizagem dentro do sistema de guildas assemelha-se aos programas de treino de pilotos que hoje existem, com, talvez, a exceção da proibição do matrimónio, que muitas guildas assemelhavam a tavernas assombradas ou ao jogo de dados.

Com a chegada da revolução industrial, os benefícios e a dependência das guildas diminuíram, mas a pilotagem permaneceu adequada a essa estrutura, pois os pilotos dependiam do treino, conhecimento e habilidades individuais. Essa estrutura evoluiu para as associações de pilotos que hoje prevalecem na profissão.

Acrescenta ainda mais ao mistério da pilotagem o facto de que ela é praticada fora da vista do público. Os fantásticos feitos de habilidade e coragem demonstrados durante o embarque e desembarque nos navios são, apenas, visíveis para as tripulações dos barcos de piloto e para os que estão a bordo do navio, pois isso acontece bem ao largo, no mar, em muitas regiões.

Este embarque offshore, normalmente, envolve uma transferência entre um barco de piloto (relativamente) pequeno e um navio enorme, ou em algumas jurisdições, de um helicóptero para um navio. Quando as pessoas de terra tomam conhecimento, pela primeira vez, de como os pilotos embarcam nos navios no mar, mal podem acreditar que, nos dias de hoje, os pilotos ainda saltem do convés de um barco de pilotagem balançando para se agarrar a uma escada de corda, que balança, pendurada na lateral de um grande cargueiro ou navio-tanque oceânico. Como essa transferência ocorre fora da vista de todos, exceto da tripulação do navio e da tripulação do barco de piloto, essa atividade altamente perigosa e um tanto heroica e desconhecida do público.

Ainda mais espetacular é o processo de desembarque de um navio em alto mar, principalmente à noite e com mau tempo, quando o piloto, no meio da pequena escada de corda, agarra um “cabo de mãoo” (uma corda pendurada ao lado da escada de corda) e faz rapel do lado do navio, esperando pousar algures no convés do barco do piloto, em movimento, que o espera abaixo.

Se isso parece perigoso, é porque é! Houve um ano, não há muito tempo atrás, seis pilotos nos Estados Unidos perderam a vida embarcando ou desembarcando em navios. (Há, precisamente, 4 anos, faleceu o nosso colega Cte Miguel Conceição, quando desembarcava de um porta-contentores em condições de mar agitado, ao largo de Cascais). Citando (um enorme eufemismo) do site da OMI4: “Um dos problemas encontrados pelos pilotos é o de embarcar no navio – principalmente quando o tempo está mau ou o navio é muito grande”. Num esforço para resolver esse problema, a OMI adotou padrões de segurança para a escada de piloto, para incentivar a cooperação internacional na implementação de práticas seguras, em relação a escadas de piloto.

Por último, a pilotagem torna-se mais misteriosa pois, na maioria dos casos, os pilotos trabalham sozinhos. Com isso, quere-se dizer que quando embarcam num navio, eles entram num mundo habitado pela tripulação do navio, onde são um estranho, um forasteiro, que pode ou não compartilhar um idioma comum. Muitas vezes, o comandante e os oficiais do navio falam uma língua e a tripulação outra. Quando o piloto emite ordens de velocidade de motor ou ângulo de leme, elas podem ter de ser repetidas, para quem realmente executa essas ordens, numa língua que ele não fala, confiando (mas verificando, olhando nos instrumentos) que a ordem é corretamente transmitida. Após o embarque, um piloto sobe até à ponte de comando onde, após os cumprimentos e uma breve conferência com o comandante sobre os detalhes do navio, tripulação e plano de viagem, toma o comando e, trabalhando de forma um tanto autónoma6, manobra o navio com segurança até o seu destino. Na maioria dos casos, um piloto é um estranho em cada navio que embarca, mas deve demonstrar o tipo de confiança e autoconfiança que constrói a confiança necessária para o capitão e a tripulação seguirem as suas ordens.

Se todo esse mistério, obscuridade e perigo não o assustaram, talvez a carreira de piloto seja a certa para si. Muitos consideram a pilotagem como o topo dos trabalhos marítimos. Em geral, os valores de compensação para a profissão de piloto estão entre os mais altos de todas as carreiras marítimas e, simultaneamente, poderá compartilhar o que é, sem dúvida, a melhor parte de trabalhar em navios, as chegadas e partidas do porto!

Se achar que a carreira de piloto lhe é adequada, o Conselho de Comissários de Pilotos das Baías de São Francisco, São Paulo e Suisun está à procura de candidatos para treino, promovendo a realização de um exame em junho, para a seleção de estagiários para licenciamento estadual na Baía San de Francisco. Visite https://bopc.ca.gov/application/ para mais detalhes!

Notas: Publicado pelo GCaptain

O artigo foi escrito por Allen Garfinkle, Diretor Executivo – Board of Pilot Commissioners for the Bays of San Francisco, San Pablo e Suisun

1 “As mercadorias não se movimentam sozinhas”, Mike Jacob, Relatório Comercial da Costa Oeste da Pacific Merchant Shipping Association, outubro de 2021, página 13.

2 “A atenção em nós é menor que a de um peixinho dourado. Aqui está o que podemos fazer sobre isso”, Jill Ebstein, Comentário, Orlando Sentinel, 6 de julho de 2021

3 Guilda - associação corporativa medieval que agrupava os indivíduos de um mesmo ofício (mercadores, artesãos, etc.) para fins de assistência e proteção de interesses comuns, geralmente regida por regras próprias e com jurisdição e privilégios exclusivos

4 “State Pilotage in America”, Clothier e Lowe, 1979. Publicado pela American Pilots' Association

5 Organização Marítima Internacional

6 Os pilotos, enquanto trabalham com a equipa da ponte, não são, em geral, considerados membros da tripulação, e consideram a tripulação como recursos da ponte.

 

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