Constrangimentos à manobra dos grandes navios porta-contentores

Artigo publicado na "Revista de Marinha" nº 992, Julho de 2016


E se um dia o porto fechar?

Isso mesmo, encerrar! Deixar de funcionar! Os navios deixarem de vir! Assim, do pé para a mão… sem mais nem menos!

Esta situação constitui-se como o pior pesadelo para qualquer gestor portuário ou autoridade marítima. E ela colocou-se, numa semana, a dois portos, dos maiores da Europa: a Hamburgo a 3 de Fevereiro de 2016 (o CSCL Indian Ocean[1] encalhou num banco do canal do Rio Elba, a caminho do Terminal Eurogate – esteve encalhado durante 6 dias e mobilizou dezena e meia de unidades para o resgate) e em Southampton, a 13 do mesmo mês, no Banco Bramble no Solent[2], ao APL Vanda[3]. De comum, nestes casos, são Ultra Large Containers Vessels e sofreram “pequenas” avarias, súbitas e inesperadas, (disfuncionalidades?), em situação de vento muito fresco, durante os procedimentos de navegação nos canais de acesso aos portos.

90% de tudo o que consumimos vem do exterior e 95% das mercadorias embarcadas em todo o planeta transitam por mar. O transporte marítimo tornou-se a indústria mais importante e poderosa do mundo, a essência da globalização. Mas a que preço?

Um porto já não é o local onde atracam os navios para carga e descarga, que apenas executa as suas funções básicas de transporte (acesso, carga, descarga e armazenamento). Nos dias que correm, os portos são, acima de tudo, interfaces (melhor dizendo, hubs complexos) com as mais diversificadas actividades e funções económicas. Aliás, nestes últimos cinco anos temos assistido a uma batalha incessante pela competitividade entre os portos, em especial no que respeita as ligações aos respectivos hinterlands, além da introdução de alta tecnologia no tratamento da operação portuária. Estes “novos” portos já não se limitam a polarizar negócios e indústrias, sendo, eles próprios, centros de serviços logísticos. É, o que se chama, negócio global.

Em simultâneo, no tráfego regular de carga contentorizada, tem havido uma enorme explosão no tamanho dos porta-contentores, com os maiores a serem capazes de transportar a surpreendente soma de 19.000 TEU’s. Já se fala nos de 24.000 para daqui a três ou quatro anos. Talvez não seja surpresa, dado o volume de bens produzidos na Ásia e consumidos na Europa e nos EUA. Por isso, a pressão sobre os portos e terminais tem sido enorme, tendo de se reequipar para receber navios de grande comprimento e largura, com novos guindastes para contentores necessários para lidar com estes volumes de carga, tanto dentro como de fora deles.

Os actuais portos, na realidade, antecipam desenvolvimentos de fluxos económicos, tanto industriais como de transporte, além da tecnologia associada e redimensionam-se de acordo com essas expectativas. De uma forma simplista, isto significa que mal o construtor naval se diz capaz de construir determinado tipo de navio, o porto começa a preparar-se para o receber e operar o respectivo fluxo de serviços que virão a ser gerados por tal unidade.

Por outro lado, o conhecimento humano, aliado à cada vez mais poderosa tecnologia que ele próprio produz, apresenta-se mais audaz, oferecendo soluções construtivas revolucionárias, tanto em tamanho, como em economia, passando pelos ganhos de eficiência e os de menor agravo à mãe natureza. É por isso que, actualmente, os limites ao tamanho dos navios giram em torno das suas operações, e não por quaisquer constrangimentos estruturais.

Este facto foi primordial para o comportamento dos armadores e operadores do transporte marítimo de contentores, já que estamos em presença de volumes de transporte astronómicos, mesmo inimagináveis. Aqui entra o que os economistas chamam de “economias de escala” – para os menos avisados, o mesmo que “quanto maior melhor”, ou “em quantidade sai mais barato”.

O caso de navios maiores (economias de escala) é muito convincente. Um navio muito grande é mais barato de operar do que dois da metade do seu tamanho, enquanto o impacto que tem sobre o meio ambiente, através das suas emissões, é muito menor. Mas muito grandes navios, que oferecem grandes economias de escala, sofrem uma perda de flexibilidade, pelo menor número de portos que os pode receber, por causa dessas dimensões, para além de certos canais (claro, os principais canais) comportarem restrições a essas mesmas dimensões, o que poderá impedir ou condicionar o seu trânsito.

Aqui, entramos no cerne da questão: os actuais navios porta-contentores, além de maiores e mais pesados (maiores deslocamentos e calados) têm, também, descomunais superfícies vélicas, sendo, por isso, muito afectados pelo vento. Isto tem um efeito significativo durante a sua manobra e quando se encontram fundeados.

Quais, então, as principais questões a levar em atenção na manobra destes novos navios. Na sua maioria são, exactamente, os mesmos com os quais o manobrador sempre se preocupou embora, perante as dimensões “olímpicas” atingidas por estes navios, convenha tomar um pouco mais de atenção nelas e fazer algumas contas, para evitar surpresas. Os efeitos de que estamos a falar são: o Squat, o Efeito de Banco e de Canal (Bank Suction/ Cushion)[4], para além do vento.

O efeito SQUAT

O navio ao deslocar-se empurra a água para diante. Essa água deslocada retorna para baixo, tanto dos lados como sob o costado do navio. Esta corrente de fluxo de retorno acelera sob o navio, provocando uma queda de pressão (como se deixasse um "buraco"), resultando no aumento de imersão do navio na água.

A esta diminuição da flutuação, tanto a vante como a ré, chamamos o Squat do navio. Atenção que não é a diferença entre calados a vante e a ré quando o navio se encontra parado, nem quando o navio se desloca em mar aberto (Trim). Na verdade, o efeito squat não altera o calado, antes reduz a UKC (Under Keel Clearance, ou seja, a Altura/Reserva Livre sob o Casco), o que embora possa parecer a mesma coisa, tecnicamente, não o é.

Se o navio se deslocar para vante em velocidade elevada, quando se encontrar em águas rasas, poderá suceder um aumento de imersão (squat), de 1,0 a 1,5 metros, podendo ocorrer encalhe, pela proa ou pela popa, em caso de perda excessiva de impulsão. A presença de um outro navio, cruzando, num rio ou canal estreito também afectará este efeito, tanto assim, que o squat pode duplicar durante o cruzamento dos navios.

Para navios de formas mais próximas da paralelepipédica, como os superpetroleiros ou navios OBO, o efeito squat afunda, geralmente, de proa. Para as embarcações de forma mais fina, tais como navios de passageiros ou porta-contentores, o efeito afundará, em geral, de popa (isto pressupondo que os navios se encontram em águas direitas na posição de repouso).

A nova geração de maiores navios porta-contentores traz novos desafios na gestão de uma UKC segura. Os navios maiores, relativamente aos mais pequenos, tendem a induzir ondas menores no seu movimento, mas mergulham mais os cascos, especialmente em águas rasas e canais restritos[5].

Os factores que regem este importante efeito sobre os navios são:

  • A velocidade do navio: é o principal factor; o squat é directamente proporcional ao quadrado da velocidade do navio.
  • A profundidade da água: o squat é inversamente proporcional.
  • As dimensões dos canais de navegação: inversamente proporcional.
  • Coeficiente de Bloco (CB = razão entre o volume imerso do navio e o volume do paralelepípedo relativo ao comprimento da linha de água, a boca e calado): directamente proporcional.
  • Factor de Bloqueio (razão entre a secção central transversal imersa do navio e a secção transversal do canal ou rio): directamente proporcional.

S  =  (b x T) / (B x H)

Um gráfico, que descreva estas relações, deve estar afixado na casa do leme dos navios ou a sua informação constar do “Wheelhouse Poster[6], para que o Piloto tenha presente essa informação.

Existem vários métodos de cálculo do squat de um navio. Além disso, deve-se notar que todos os navios são diferentes nas suas características. Até o mesmo navio pode alterar o valor do efeito conforme o seu calado, trim e condição de corrente.

Figura: Deve existir um gráfico com as informações relativas ao calado e squat actuais

De uma forma expedita, podem ser utilizadas as seguintes fórmulas como orientação para o cálculo do squat. A resposta será em metros, sendo CB o coeficiente de bloco da embarcação e V a velocidade da mesma em nós.

Os efeitos de BANCO e de CANAL

Quando um navio se movimenta através de águas restritas, tem de navegar perto da costa ou de outras estruturas feitas pelo homem, pelo que é limitada a largura navegável disponível. A pouca profundidade da água e a proximidade às margens do canal afectam a manobrabilidade do navio. Estes efeitos provocam erros de manobra, o que pode levar a encalhe ou a colisão.

Os fenómenos mais comuns na navegação em rio ou canal estreito são os efeitos de Banco (Bank Suction/ Cushion) e, a sua conjugação, que nomeamos de efeito de canal. A Bank Suction é a tendência de um navio se aproximar ao banco, uma vez que a água deslocada ao longo da margem ganha velocidade ao ser comprimida contra a margem e provoca vácuo/sucção. O efeito oposto, conhecido como Bank Cushion sucede porque a onda de proa ressalta na margem e volta contra o navio. Os efeitos desses fenómenos são agravados com a proximidade à margem e variam com a velocidade.

Muitas vezes sucede que estes efeitos se somam, durante a navegação em zonas mais limitadas, em especial em rios, ou quando o canal de navegação é muito próximo da margem, ou do banco. A este efeito conjugado chamamos o Efeito de Canal.

Figura: Os efeitos de Canal

O Efeito do VENTO

O vento tem uma influência significativa na manobra de navios de superfície vélica elevada, tais como porta-automóveis e navios porta-contentores (além dos navios graneleiros e navios-tanque em lastro). É especialmente difícil prever o efeito do vento sobre um navio porta-contentores parcialmente carregado. O controlo de um navio pode ser facilmente perdido durante a passagem de uma tempestade.

O vento provoca a deriva do navio e a sua influência é contrariada pela parte imersa, que tenta resistir ao efeito do vento. O centro de resistência lateral (CLR) é o ponto da parte imersa do navio onde se considera actuar essa força hidrodinâmica. No caso de haver seguimento, seja avante ou a ré, poderemos considerar este ponto como coincidente com o ponto pivô (P) – atenção, no entanto, que um navio parado não tem ponto pivô.

Da mesma forma, há um ponto de aplicação do vento (W) que tem uma relação muito importante com o CLR. A posição de W é susceptível de alterar com frequência, em razão da direcção do vento e da posição relativa do navio àquele.

Para antecipar o efeito que o vento terá sobre o navio, deve ser estudada a posição do ponto de aplicação do vento (W) em relação ao ponto pivô (P) quando em movimento, ou ao CLR, quando parado. O navio procurará, sempre, uma posição tal, que o ponto pivô (P) e o ponto de aplicação do vento (W) fiquem alinhados. Assim, quando o P se encontrar por vante de W, a proa tenderá a virar ao vento e quando P estiver por ré de W será a popa que tenderá rodar ao vento. O momento tenderá a ser nulo quando os dois pontos forem coincidentes ou muito próximos.

Figura: O efeito do vento no comportamento do navio em manobra

Surpreendente, ou não, é o facto dos navios porta-contentores a partir dos 13.000 TEU’s de capacidade até os actuais de 20.000 (o maior ao momento tem 19.224 – da série MSC Oscar) terem, praticamente, o mesmo comprimento. O que varia é o formato de casco (em V ou de fundo chato), a boca (que permite 19 a 23 fiadas de contentores em largura) e a posição da máquina e da estrutura do casario (que permitirá mais, ou menos, uma altura de estiva de contentores no convés).

De acordo com a norma ISO 1496, o contentor base da pilha pode suportar até 192 T sobre si (tendo por base assumir uma aceleração vertical máxima de 1,8 g), no que resulta haverá duas modalidades de estiva de contentores possíveis, sete alturas de 40’ cubo, de 9' 6" de altura, o que totaliza uma altura de 20,27 m ou oito alturas de contentores padrão de 8' 6" com uma altura de 20,73 m. Partindo do princípio que poderão existir outras situações de estiva, poderemos assumir os 21 m como máximo de altura permissível acima do convés (por questões de visibilidade de navegação, a partir da ponte). Assim, considerando um bordo livre de 18 m, teremos uma altura total, fora de água, de 39 m.

Multiplicando esse valor pelo comprimento de convés “comercial” disponível de 385 m, chegamos a um valor de 15.015 m2. Se lhe adicionarmos as áreas não contabilizadas do castelo de proa e das estruturas acima do nível da carga (casario e chaminé) chegaremos a um valor próximo a 15.500 m2 de área vélica lateral com o navio à carga máxima. Para calcular a área vélica de proa, multiplicamos a altura de bordo livre pela boca do navio, ao que lhe adicionamos a área da frente da ponte/casario. Neste caso, aproximadamente, 3.000 m2.

Figura: Dimensões aproximadas para um navio de 20.000 TEU’s (Fonte: DNV GL)

E já se fala em 10 estivas sobre o convés, sendo que os construtores de gruas de pórtico já as constroem em resposta a este requisito e alguns terminais já se preparam para elas.

Este cálculo da área vélica permite fazer uma estimativa da força total do vento sobre o navio e, por via disso, dá-nos uma indicação da potência total de rebocagem necessária para superar essa força, a partir da fórmula expedita:

F = (V2/18.000) x Av

Sendo F a força do vento (em toneladas por metro quadrado), V a velocidade do vento em m/s (metros por segundo) e Av a área do navio exposta ao vento (metros quadrados).

Uma regra de ouro na manobra deste tipo de navios é perfazer a tonelagem de reboque necessária com recurso à utilização de vários rebocadores de potência média/alta, em vez de apenas rebocadores muito potentes, em menor número. Isto pelo facto de que, em caso fortuito de avaria de uma das unidades, ou quebra de um cabo de reboque, se conseguir distribuir melhor a força necessária pela potência remanescente. Da mesma forma, haverá que acautelar a carga de rotura dos cabos de reboque a utilizar, procurando sobrestimar os valores para evitar “surpresas”. 

Estes navios serão, porventura, demasiado grandes e demasiado competitivos (“apressados”) cuja demanda aos terminais, altamente competitivos, tem uma janela temporal estritamente definida e rígida, sem margem para atrasos nem contemporizações de ordem meteorológica. É preciso lembrarmos que os portos poderão estar diferentes, mas são os mesmos! Teremos o trem naval adequado para trabalho tão específico? Estar-se-á a “esticar demasiado a corda”? E se um dia “o nosso porto” ficar fechado?

Too big to fail or too big to sail? [7]

 

Nota Final

Atualmente, existem navios ao serviço com capacidade de + 23.000 TEU's e já se fala em navios de até 25.000 TEU's, com 11 estivas sobre o convés. O tamanho tem sido o argumento mais usado pelos operadores. Aumentam o tamanho, diminuem as escalas e reduzem a velocidade. Até aqui, a engenharia tem acompanhado com enorme investigação sobre melhores ligas de aço e novas técnicas de construção. Pelo prisma técnico parece não haver limite. Será que o gigantismo só será posto em causa via desastre das seguradoras? Basta perceber o que se está a passar com o "Ever Given" no Suez. Serão muitos milhões diários, até quando?

 


Notas

[1] O CSCL INDIAN OCEAN tem 400m de comprimento e 59m de boca; a sua arqueação bruta é de 187.541 toneladas e pode carregar até 19.100 TEU’s. Razão de avaria: falha de energia na máquina de leme.

[2] O Banco Bramble, situa-se no Solent, entre Southampton e a Ilha de Wight, tendo nele sido encalhado, propositadamente, o ano passado, o car carrier HOEGH OSAKA de 51.000 toneladas, por perda repentina de estabilidade.

[3] O APL VANDA tem 368,5m de comprimento e 51m de boca; a sua arqueação bruta é de 151.963 toneladas e pode carregar até 13.900 TEU’s. Razão de avaria: perda de propulsão/blackout.

[4] Causa presumida da colisão entre dois navios porta-contentores no Canal do Suez, a 29 de Setembro de 2014. O alemão Colombo Express atingiu o Maersk Tanjong com bandeira de Singapura.

[5] Gourlay, T.P. et al, in “Sinkage and Trim of Modern Container Ships in Shallow Water”, Australasian Coasts & Ports Conference 2015

[6] O Wheelhouse Poster fornece um resumo da informação relevante sobre a capacidade de manobra do navio (curvas evolutivas, velocidade aos vários regimes de máquina, ângulos mortos de visibilidade, etc).

[7] Comentário no site Cruise Law News a propósito dos encalhes dos M/S CSCL Indian Ocean e M/S APL Vanda


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