15 de fevereiro de 2021

O porta-aviões das gaivotas

Eram 09:40 da manhã do sábado 16 de fevereiro de 1980. Debaixo de nevoeiro cerrado e em pleno estuário do Tejo – em frente ao Cais Jardim do Tabaco – o porta-contentores «Tollan», com pavilhão Bermuda, colide com a grua flutuante portuguesa «Engenheiro Espargueira», puxada pelo rebocador portuário «Serra de Portalegre», abalroando, de seguida, o porta-contentores sueco «Barranduna» (Con-Ro), que se encontrava à carga, fundeado. Em consequência, o Tollan sofreu um rombo no casco, meteu água e acabou por se virar completamente, mas sem se afundar, arrastando para a morte 4 dos 16 tripulantes, incluindo a esposa do primeiro oficial de máquinas.

Alguns saltaram para o rio Tejo e foram resgatados. Outros permaneceram a bordo e foram resgatados por rebocadores. Outros, no entanto, incluindo a senhora, ficaram, irremediavelmente, presos dentro do navio naufragado. Quando os mergulhadores conseguem entrar no navio, já nada podem fazer pelos que ficaram aprisionados nos camarotes.

Dois dias após o naufrágio, o navio quebra as correntes que o sustinham, rodou por 180 graus, foi arrastado pela vazante, acabando por encalhar, com o casco vermelho voltado para cima, em frente à Ribeira das Naus, a uma centena de metros da margem, passando a ser um perigo para a navegação.


Figura 1: M/V Tollan (IMO: 7815674) era um cargueiro Ro-Ro registado sob a bandeira das Bermudas.

O porta-contentores «Tollan»

Navio porta-contentores de tipo Ro-Ro, o Tollan fora construído nos estaleiros japoneses Kasado em 1979 sendo, portanto, recentíssimo. Estava registado nas ilhas Bermudas e navegava por conta do armador Tackler, uma subsidiária da sociedade Sea Containers Atlantic, registada na Grã-Bretanha.

Tinha sido afretado em outubro de 1979 pela Polish Ocean Lines, de Szczecin, para o transporte de contentores da Europa para Lagos, na Nigéria. Depois de três viagens rotineiras e normais, em 8 de fevereiro de 1980, o Tollan iniciou nova viagem.

Como o carregamento em Amesterdão, Hamburgo e Antuérpia ainda não o havia preenchido totalmente, o operador enviou-o a Lisboa para terminar o carregamento. A partir daqui conhece-se a história. Devido ao denso nevoeiro, tanto o piloto quanto o capitão governaram o navio seguindo as indicações do radar, condição que não era novidade para ambos, qualquer deles com vasta experiência. Mesmo os melhores radares, no entanto, não garantem a prevenção de perigos – afinal, tudo é decidido por pessoas.

Especulou-se muito sobre o conteúdo dos contentores. Na realidade, os 220 contentores do navio, continham inseticidas industriais (nomeadamente o muito tóxico «New Instant Killer»), amianto e outros produtos perigosos, alfaias agrícolas, máquinas de escrever, chá e outras mercadorias provenientes da então Checoslováquia.

Figura 2: Enquanto esteve virado no Tejo, muito se especulou sobre a natureza da sua carga, chegando mesmo a falar-se do «tesouro» do Tollan, segundo os boatos, lingotes de ouro.

Felizmente para a população ribeirinha, e para a sanidade do Tejo, esses produtos mantiveram-se (apesar da longa permanência na água) nos seus invólucros e foram removidos, intactos, após a operação de salvamento do Tollan, tal como as 600 toneladas de combustível conservadas nos tanques do navio, para utilização da sua própria máquina.

O ConRo «Barranduna»

O primeiro navio algo parecido com um Ro-Ro remonta a 1833 e era uma espécie de barcaça que movimentava vagões ferroviários nos canais Forth e Clyde, na Escócia.

O transporte marítimo Deepsea Ro-Ro é uma especialização que surgiu na década de 1960 como uma das ramificações do outrora navio de carga geral de conceito único. Na verdade, este desenvolvimento foi impulsionado pelo contentor ou, em particular, pelo alto grau de unitização da carga que a caixa retangular oferece.

Como tal, foi a combinação de um navio porta-contentores e um navio Roll on-Roll off (o ConRo), o primeiro navio Ro-Ro de alto mar. Estes navios ligavam destinos onde os custos de manuseio de carga eram elevados, a rotação do porto era lenta ou as instalações do porto eram limitadas. Por não precisar de extensas instalações de manuseio em terra, o ConRo era o navio ideal para atender a esse tipo de tráfego.

Acima de tudo, foram os operadores escandinavos que assumiram o desafio de investir nos custos de capital, relativamente elevados, deste tipo de navios.

Em 1972, as East Asiatic, Transatlantic Steamship e Wilh. Wilhelmsen lançaram uma joint venture, a ScanAustral, colocando cinco ConRo de 22.000 dwt com uma rampa de popa angulada incorporada. Na época, a Austrália era um destino onde os trabalhadores portuários eram responsáveis ​​por altos custos de estiva e movimentação de carga e por estadias prolongadas em porto.

O Barranduna era um desses cinco navios, tendo sido vendido, em 1985, à Marinha dos EUA, como navio de apoio logístico, mantendo-se ao serviço com o nome de «Cape Ducato».


Figura 3: O navio cargueiro sueco Barranduna (1972- ). Este navio chama-se, atualmente, Cape Ducato e pertence à Marinha dos Estados Unidos.

O navio que ninguém conseguia retirar do Tejo

O que se seguiu ao acidente, foi uma longa saga de tentativas frustradas de remover o navio. Durante quase quatro anos, o navio permaneceu encalhado em frente à principal praça lisboeta e entrou no anedotário nacional. O Tollan (ou a versão aportuguesada, “Tolan”) deu nome a cafés e restaurantes e entrou no léxico como sinónimo de "encalhado" – ou de "aquele que ninguém consegue virar".

Os jantares de solteiros passaram, por exemplo, a designar-se como "jantares tollan". E o monstro de metal, com o casco invertido a boiar no Tejo, ganhou várias alcunhas. O “Porta-Aviões das Gaivotas”, “A Baleia Vermelha”, “O Farol dos Cacilheiros”, “Hotel das Gaivotas” e “Barco-estátua” eram alguns dos epítetos usados para o navio naufragado. Tornou-se uma atração turística, com pessoas vindas de todo o país a fazerem autênticas romarias até ao “fenómeno”, sobretudo quando se projetava uma nova tentativa de salvamento. Desses tempos, volta à memória o jingle "Alô! Alô! Gaivotas, Tollan!", que passava todos os dias na rádio. Pesquisa no Google ainda regista Café Tolan, em Alverca, Arcena e na vetusta Alfama; mas a mais incrível é a existência de um pão com esse nome, à venda pelo Ribatejo.

O navio tornou-se um perigo para a navegação. Na manhã de 22 de outubro de 1980, debaixo de denso nevoeiro, o cacilheiro porta-automóveis e passageiros da Transtejo «Monte Pragal» colide com o escolho. Não há registo de danos pessoais ou materiais, mas este acidente veio demonstrar que a presença do Tollan no Tejo, não dava tranquilidade a quem tinha de navegar por aquelas águas.

Figura 4: Construído em 1946 na Bélgica, com o nome de "RUPEL", foi vendido para Lisboa em 1959, onde recebeu o nome "Monte Pragal". Em outubro de 1980 ensarilhou os hélices nas amarras do naufrágio.

Na segunda metade de 1981, um frustrado armador italiano recorreu, até, a explosivos para tentar virá-lo. Depois de tanto falhanço, ficou a cargo da Marinha Portuguesa a incumbência da remoção do navio, que impedia o normal funcionamento do porto de Lisboa e oferecia risco à navegação – Decreto-Lei n.º 239/82. Na noite, igualmente fria, de 2 de Dezembro de 1983, pelas 20:20, a Sea-Lift vira, por fim, o navio e leva-o para o Poço do Bispo. Daí seguirá, mais tarde, para uma doca seca para ser desmantelado.

Figura 5: Cabem aos alemães os louros pelo resgate, não sem vários desaires prévios – por vezes, com milhares na assistência. Eram, inclusivamente, organizadas excursões do norte e do sul do país, tendo como principal atração ver, “ao vivo e a cores”, o Tollan em pleno Tejo.

Transcrevo a notícia do “Diário de Lisboa” de 3 de dezembro de 1983: «A "Sealift” teve êxito nas suas operações para virar o barco acidentado andavam os relógios a dar minutos e segundos à volta das 20 e 20 de ontem. As ondas alterosas que se esperavam não apareceram porque o fim da cambalhota foi calmo e remansoso, com o "Tollan” a refastelar-se sobre o lodo do Tejo.

Os mirones que cederam aos apelos da Comunicação Social terão adivinhado mais do que visto. Mas ouviram claramente os apitos de muitos barcos que comemoraram o acontecimento, do mesmo modo que abrem caminho em manhãs de nevoeiro.

A empresa alemã, finalmente, dava, por seu lado, um grande passo para transformar em factos os 985 mil dólares (130.000 contos) que contratou para fazer o serviço.»

Três anos, oito meses e quinze dias durou a odisseia!

 

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